Resumo

          A litíase urinária determina uma morbidade significativa e estudos epidemiológicos mostram um aumento de sua prevalência em países industrializados. Mudanças nos hábitos alimentares têm contribuído para a evolução desta patologia. Este trabalho compreende três etapas, a tem por objetivo avaliar alguns aspectos dos fatores nutricionais na cristalúria oxalo-cálcica e determinar o papel da cristalúria na prática clínica.

          Primeira etapa. Foi realizado um estudo experimental piloto, com o objetivo de validar um modelo de indução de hiperoxalúria em animais, que fosse estável, reprodutível e que não acarretasse insuficiência renal. Doze ratos Wistar AF, machos, foram submetidos a dieta moderadamente deficiente em Cálcio (Ca) (0,1%) e água mineral contendo 78 mg/1 de Ca (Evian ®) ad libitum, durante 21 dias. Após uma semana de adaptação à gaiola metabólica, os animais foram divididos em 6 grupos de 2 animais, que receberam etileno glicol (EG) adicionado á água ou oxalato de sódio (OxNa) misturado ao regime alimentar, durante um período de 15 dias: grupo 1, EG 2,0% ; grupo II, EG 1,0% ; grupo III, EG 0,5 % ; grupo IV, OxNa 80 mg/100g; grupo V, OxNa 40 mg/100g; grupo VI, OxNa 20 mg/100g. No 7° e 21° dias foram realizados análise de cristalúria, dosagens de Ca e de oxalato na urina de 24 horas, e de creatinina no plasma. No final do estudo os animais foram sacrificados, tendo o trato urinário sido cuidadosamente dissecado para pesquisa de cálculos e os rins retirados para análise radiológica e histológica. Os resultados mostram que o EG foi tóxico nas concentrações de 2,0% e 1,0%, e nefrotóxico na concentração de 0,5%. A sobrecarga em OxNa acarretou aumento na oxalúria e induziu a formação de cristais de oxalato de cálcio (OxCa). O modelo utilizando este agente indutor na concentração de 20 mg% mostrou ser mais estável.

           Segunda etapa. Nesta etapa avaliamos o efeito de diferentes concentrações de Ca da água na formação de cristais de OxCa, em animais submetidos a dieta deficiente (0,1 %) ou a dieta normal em Ca (1,0% ). Quarenta ratos adultos, machos, Wistar foram submetidos a dieta deficiente em Ca (0,1 %) e água mineral ad libitum , durante 21 dias. Após uma semana de adaptação à gaiola metabólica, os animais foram divididos em 3 grupos, que receberam aporte de água com diferentes teores de Ca: grupo I (n=13), Ca=222 mg/1, Badoit ®; grupoII (n=14), Ca=467 mg/1, Contrexéville ®; e, grupo III (n=13), Ca=78 mg/1,Evian ®. Simultaneamente, OxNa a 20 mg/100 g foi adicionado à dieta. Outra série de 25 ratos (grupo I, n=9; grupo II, n=8; grupo III, n=8), foi submetida ao mesmo protocolo, sendo que o conteúdo de Ca da dieta era normal-alta (1%). No 7° e 21 ° dias do protocolo experimental foram realizadas análises bioquímicas e de cristalúria. No final do estudo os animais foram sacrificados, seguindo o mesmo protocolo descrito na primeira etapa. Nos animais submetidos a dieta pobre em Ca (0,1%), cristais urinários de OxCa monohidratado (COM) foram observados somente após a adição de OxNa à dieta, com um número médio significativamente maior no grupo III (16,7 + ou - 4,5 cristais/mm3) do que nos grupos I e II (2,5 + ou - 1,5 e 4,1 + ou - 1,5 cristais/mm3, respectivamente). Cristais de COD foram vistos apenas no final do estudo e não houve diferença entre os grupos. O produto oxalo-cálcico (pCaOx) reduziu-se (p<0,005) de modo semelhante nos três grupos no final do experimento. A adição de OxCa também acarretou diminuição da razão molar oxalo-cálcica (Ca/Ox) (p<0,001), porém com valores significativamente maiores no grupo II (3,1 + ou - 0,6 mmo12) do que nos grupos I (1,1 + ou - 0,2 mmol2) e III (0,6 + ou - 0,06 mmo12). As concentrações de Ca e magnésio (Mg) urinário diminuíram em todos os grupos (p<0,001 e p<0,01, respectivamente) após a adição de OxNa à dieta, enquanto que a concentração de oxalato urinário aumentou em todos os grupos (p<0,001). A alanina aminopeptidase urinária aumentou (p<0,001) de modo semelhante nos animais dos três grupos, após sobrecarga em oxalato, enquanto que a gama-glutamiltranspeptidase não se modificou. Nos animais submetidos a dieta normal em Ca (1,0% ), cristais de COM foram observados somente após a adição de dieta enriquecida com OxNa, mas, neste caso, a adição de OxNa à dieta não modificou a excreção urinária de oxalato, o pCaOx e a Ca/Ox As concentrações urinárias de Ca de Mg diminuíram no final do estudo (p<0,05 e p<0,01, respectivamente), enquanto que a excreção destes íons não se modificou. Nos dois protocolos experimentais (dieta 0,1% e 1,0% ), a função renal permaneceu estável em todos os animais, e a análise radiológica e histológica não revelou alterações em qualquer dos animais estudados. Concluímos que o grau de dureza da água pode influenciar a formação de cristais de OxCa, quando a ingesta alimentar em Ca é pobre. Portanto, podemos inferir que a prescrição de dieta pobre em Ca nos indivíduos portadores de litíase oxalo-cálcica tende a aumentar a excreção de oxalato urinário, acentuando o risco litogênico.

           Terceira etapa. No período de setembro de 1993 a setembro de 1996, avaliamos 755 cristalúrias provenientes de 464 pacientes (32,1 + ou - 0,74 anos), e o estudo morfológico de 310 cálculos urinários oriundos de 145 pacientes (34,9 + ou - 1,2 anos). Em 8,6 casos, a análise morfológica do cálculo foi comparada com aquela da cristalúria. Várias causas motivaram a solicitação do exame de cristalúria: -litíase renal = 423, dor lombar = 52, transplante renal = 68, candidatos a doação em transplante renal = 48, investigação familiar de litíase = 75. A chance de eneontrar cristalúria positive nas amostras dessa população global variou de 34,6% a 41,6% . Nos pacientes litiásicos, este exame mostrou uma sensibilidade de 40,7% e especificidade de 63,9%. Os cristais mais freqüentes, em ordem decrescente, foram os de COD, COM, ácido úrico dihidratado, fosfato de cálcio amorfo carbonatado cemplexo, bruxita, cistina a estruvita. Associações de espécies cristalinas ocorreram em 31% das amostras positivas. Os cristais de OxCa foram mais freqüentes no sexo masculino. Dos 145 pacientes analisados, 60% eliminaram múltiplos cálculos. Nestes pacientes, foram consideradas apenas os cálculos com tipagem morfológica diferente. Desta forma, os resultados foram baseados na análise de 156 cálculos. Oxalato de cálcio monohidratado foi o constituinte majoritário mais freqüente, enquanto que o fosfato foi o minoritário. O segundo constituinte mais freqüente, tanto majoritário quanto minoritário, foi o COD. Os cálculos puros foram observados em 72 amostras: tipo I = 36,1 % , tipo II = 20,8% , tipo IV = 20,8 % , tipo III = 19,5%, tipo V = 2,8%. Houve predomínio do sexo feminino nos cálculos do tipo II e IV, e do sexo masculino nos tipos III e V. A cristalúria foi positive em 48 de 86 pacientes que eliminaram cálculos (chance entre 45,4% a 66,2% ). Os cristais foram concordantes cum a tipagem morfológica em 83-100% dos cálculos puros, exceto os de fosfatos, onde esta taxa foi de 50%. Sendo o primeiro estudo associando informação sobre prevalência de cristalúria e anátise de cálculo realizado na região Nordeste, podemos sugerir que oxalate e ácido úrico têm um importante papel na fisiopatogenia da litíase urinária na Região, provavelmente devido a fatores locais ambientais e culturais. Sugerimos que estes métodos sejam utilizados na prática clínica, especialmente na avaliação e seguimento de pacientes litiásicos, bem como na investigação familiar de litíase.